Caio Naressi é cofundador do FotSom e cineasta independente desde 2015. Atualmente realiza um doutoramento em cinema pela Universidade de Montréal onde pesquisa a possibilidade da transcrição da memória autobiográfica em animação.
Dentre as razões do inconsciente que são, muitas vezes, inexplicáveis, escolhi falar de um filme que me é muito caro. Um filme que quando vi pela primeira vez não tinha maturidade suficiente para entendê-lo, mas quando revi, algumas vezes depois, as camadas foram se mesclando e a potência das imagens fizeram então o seu eco dentro de mim.
Essas palavras são apenas para tentar traduzir o efeito que o filme Noite de Estreia (Opening Night, EUA, 1977) pode causar. Talvez, dentre os críticos de cinema mais ferrenhos, que usam da técnica cinematográfica para entender e explicar o cinema, eu me aproxime pouco, ainda que o faça. Porém, é o cinema que fornece material para entender a vida. E é daí que parte, em geral, meu ponto de vista ao assistir um filme.
Em Noite de Estreia, John Cassavetes nos coloca diante de alguns dramas, por isso as diversas camadas citadas anteriormente. Há, claro, a complexa relação entre personagem, ator; ficção, realidade. Ou seja, o teatro como ponto de imbricação de uma terceira persona do corpo. O corpo, então, como espetáculo de potência de ação, da exaustão da ação e da ausência de controle: o corpo como reação imediata na construção do pensamento. Afinal, essa é a grande vertente do cinema de Cassavetes1. Para mostrar tal relação de subjetivação do corpo, vemos cortes rápidos e abruptos nas imagens e seus já reconhecíveis primeiríssimos planos, onde conseguimos captar cada hesitação dos personagens. E é na beleza da hesitação que se verifica a essência humana.
É entre conversas travadas por Sarah e Myrtle que podemos entender a cumplicidade do processo que Myrtle enfrenta e pelo qual Sarah já passou.
Além disso, há o drama particular que cada personagem experimenta diante dos acontecimentos de uma peça que se chama vida. O improvável e o inesperado são colocados diante da lógica natural da vida e do passar do tempo. Diferente, e ao mesmo tempo muito próxima, a vida pode ser como uma peça de teatro: por mais que se decorem as falas, um espetáculo é diferente do outro.
É, portanto, na questão do envelhecer – e de se deparar com o envelhecer – que a atriz-celebridade Myrtle Gordon (a impecável Gena Rowlands) é confrontada. Ao aceitar o papel principal da peça The Second Woman (em tradução, A Segunda Mulher), que discute a posição da mulher no envelhecer a partir dos relacionamentos entre o ex-marido e o atual, Myrtle praticamente colapsa entre o mundo ficcional, suas fantasias e a realidade (cruel) do tempo. Myrtle é Virginia, a personagem da peça, e Virginia é Myrtle. A construção entre as duas se confunde e fica difícil distinguir quem é quem, tanto ao espectador quanto às próprias personagens.
A peça é escrita por Sarah Goode (Joan Blondell), uma mulher mais velha que passou e superou, a partir da escrita, o drama de envelhecer. É entre conversas travadas por Sarah e Myrtle que podemos entender a cumplicidade do processo que Myrtle enfrenta e pelo qual Sarah já passou.
Somos voyeurs ávidos por construir o dentro e o fora, não só da peça, mas também dos personagens.
É aí que entra o trabalho excelente de Cassavetes. A partir da linguagem cinematográfica nós, espectadores, nos perdemos nessas personas e em suas confusões.
As imagens se dividem em dois momentos: ora vemos em plano aberto a visão teatral, nos deixando assistir a uma peça filmada, ora a câmera nos lembra de que estamos no cinema e o plano se fecha e podemos, então, adentrar as coxias do teatro e vivenciar a dramaturgia interna. Somos voyeurs ávidos por construir o dentro e o fora, não só da peça, mas também dos personagens.
Há ainda uma terceira mulher, responsável por ser o estopim da crise de Myrtle. Na saída da primeira noite da peça, logo no início do filme, uma misteriosa jovem de 17 anos vai ao encontro da atriz e se declara apaixonada por ela e pelo seu trabalho. Myrtle imediatamente se sente cúmplice dessa jovem que, em seguida, é atropelada e morre em frente ao teatro. É essa jovem que entra na fantasia de Myrtle. É ela que encarna o papel da jovem que habita em Myrtle e que causa confrontos – até mesmo físico – entre as duas. É ela também, nas fantasias de Myrtle, que afirma que o teatro é sexo, libido, potência. E todos que passaram dos 20 e poucos anos sabem que é principalmente no ato sexual que vemos e sentimos a velhice nos olhar fundo nos olhos. Para o bem e para o mal.
Entretanto, a vida é o que acontece entre os atos, nas coxias, nos entre quadros e é isso que o bom cinema está a nos mostrar.
O filme acompanha todo o crescente drama de Myrtle até a estreia da peça em Nova York. Vemos uma Virgínia (ou Myrtle?) improvisando falas e ações durante os espetáculos anteriores à estreia principal e temos acesso a todas as consequências de seus atos. É entre os confrontos e a esperança de uma retomada da atriz que diretor, produtor e elenco esperam que a peça vá estourar. Mas a cada interpretação de Myrtle, vemos uma Virginia completamente diferente da anterior, em uma espécie de teste de limites entre a tensão do roteiro e a improvisação do elenco. Nos confundimos entre as duas até a grande estreia que dá título ao filme. Logo, é com apreensão que assistimos aos últimos trinta minutos de longa, sem saber exatamente quem estamos a ver no palco. A interpretação final desses 30 minutos, entretanto, fica a cargo do espectador.
É, portanto, com Noite de Estreia que digo que o cinema, para mim, é como Myrtle interpretando Virginia. É, sim, uma questão técnica que, quando bem executada, se transforma em uma filosofia, um delírio e, por que não, uma crise. A partir do cinema, permito-me entender a vida. A partir de outros pontos de vista, construo o meu. Nessa confluência entre o que eu penso e o que eu estou a ver, nasce uma análise. E é claro que, se não há um trabalho técnico apurado, o cinema se torna superficial e ficamos presos a questões banais como começo, meio e fim de uma história. Entretanto, a vida é o que acontece entre os atos, nas coxias, nos entre quadros e é isso que o bom cinema está a nos mostrar. Muitas vezes não precisamos de um final, nem talvez de uma boa estreia, mas precisamos, com certeza, de algo que nos dê sentido no durante.
[1]: Para quem se interessar na questão dos corpos, recomendo a leitura do livro Le corps au cinéma: Keaton, Bresson, Cassavetes (1998) de Vicent Amiel em que o autor vai discutir a questão da objetificação do corpo, reduzido ao controle do poder disciplinante, como acordado por Foucault, e o retorno à subjetividade do corpo nos filmes de Cassavetes, por exemplo, algo que discuto brevemente neste artigo.